sábado, 5 de setembro de 2009

Depois do começo


Renato Russo cantou com ares presunçosos: "vamos deixar as janelas abertas/deixar o equilibrio ir embora"; "acender um intervalo pelo filtro/usar um extintor como lençol"; "Deus, Deus, somos todos ateus".
Mas acho que o tratamento seja este mesmo - alfinetar a letargia com versos que contrapõem as cápsulas de cultura que afastam de nós todo tipo de reação inata.

Anacrônica

Segue aí um textinho meu, classificaram como crônica, na entrelinha é muito lírico.

Dia de vida inteira

O expresso Jardim Europa, quando passa pelo ponto da Mascarenhas de Moraes, vem leve e acelerando forte. Dobrando a esquina, entrando na Cardeal Junqueira, o conforto e a tranqüilidade da viagem transformam-se em caos e dor de cabeça. A meia dúzia de passageiros passa a acompanhar a entrada de oitenta trabalhadores esgotados e estressados, apertados, lotando os assentos e o corredor do ônibus.
Eu, que não me canso nem me aborreço em meu tranqüilo emprego, corro quinhentos metros até o último ponto antes da Cardeal, na Mascarenhas de Moraes. Sempre embarco no ônibus vazio, tomo o último assento à esquerda e pego meu livro.
Hoje me arrependi de percorrer os quinhentos metros, do sorriso e do “boa tarde” que dei a uma mulher quando cheguei ao ponto. A cortesia abriu a porta da euforia e ela não parou mais de despejar informações que não me valiam absolutamente nada.
Chegando à Cardeal, eu já sabia seu nome, onde morava, onde nasceu, quantos filhos tinha, sua idade. Passando pela igreja, já sabia que o pai morrera do coração, a mãe morrera de pneumonia, e a irmã mais nova virou “puta no Espírito Santo”, segundo ela.
Já na metade do percurso, ela havia contado sua vida até os trinta e cinco anos. Falou mal da patroa, em diversos exemplos pitorescos e exagerados, exaltou Deus, na mais firme fé cristã. Nessa parte eu apreciei incríveis cinco segundos de silêncio.
Agora que já estou perto da minha parada, sei que ela está indo visitar uma prima que desde menina não vê e que encontrou durante o dia. “Quase não a reconheci”, disse começando uma história da infância, quando moravam juntas. Minha cabeça lateja e contemplo a paisagem do meu bairro, a descida está próxima e já me levanto. Poderei ler meu livro em paz, no sossego do meu quarto. Ela também levanta e vai esbarrando até a porta: “Também desço aqui!”
Saco! Dou um sorriso falso. Que coincidência! Pergunto qual o endereço. “Não sei, só sei que é nesta rua”. – Qual o nome da sua prima? “Maria Josefina Do Carmo”
A dor de cabeça aumentou, a história do livro acabou. É minha mãe!